Nunca, como nos tempos que correm, o vocábulo
tauromáquico “alternativa“ se aplicou
com tão assertiva propriedade à democracia portuguesa, imitação fiel da brutal tragicomédia
que é a tourada lusitana.
Mais grave ainda: na festa brava da democracia à portuguesa o sacrificado não é o touro
mas o povo português, que vem sendo incessantemente flagelado com farpas de austeridade cada dia mais
gravosas e dolorosas, sem que haja Sociedade
Protectora dos animais que lhe valha.
Sobretudo desde que o diestro Passos Coelho entrou a matar, diligentemente
coadjuvado na sua faena pelo capinha Paulo Portas e pelo moço de espadas Victor Gaspar, depois
que o bandarilheiro José Sócrates
rematou a sua mágica sorte de capa
com empolgante série de bandarilhas,
com que encostou o animal às tábuas.
Dirige a corrida o inteligente Cavaco
Silva, um moralista desmoralizante, a toque de cujo clarim as diferentes quadrilhas
entram e saem da praça, e executam as
suas faenas ao som dos inflamados paso dobles da charanga
da Assembleia da República, e das palmas e olés dos aficionados. Não raras vezes também se ouvem os gritos “Eh touro lindo”, “Eh bom aluno” e “Aguenta, que é democrático!”, com os
quais pretendem levar o animal a colaborar alegremente no espectáculo.
Ultimamente, várias personalidades
públicas com reconhecida experiência no mundo taurino, têm vindo a promover um mano a mano do matador
Passos Coelho com o ainda candidato a bandarilheiro
António Seguro, que traria, segundo eles, mais forte emoção à fiesta. António Seguro, porém, proclama,
peremptório, preferir receber primeiro a alternativa
do inteligente Cavaco Silva, e
reservar para si a glória de disferir a estocada
fatal.
Entretanto, nas trincheiras, agitam-se
os grupos de forcados do PS, PSD e
CDS, de pé nos estribos e barretes na mão, nervosos, prontos a saltar para a arena, devidamente capitaneados por cabos denodados e valentes. Enquanto os campinos do PC e do BE, com os seus
trajes típicos e armados de compridas aguilhadas,
batem coma as mãos nas tábuas para
chamar a atenção do touro, aguardando a oportunidade de fazer valer a manada de
ideias chocas com que irão rodear o massacrado animal para o recolher aos
curros e posteriormente ao matadouro, onde esperam poder disputar os despojos
do animal sacrificado.
Particularmente vistosas têm sido as sortes a cavalo, com elegantes banqueiros
e especuladores montados em corcéis engalanadas com emblemas, lentejoulas e fitas
doiradas comemorativas dos recentes sucessos na exploração do Estado e dos cidadãos.
Para os anais da história taurina ficará a faena
da quadrilha do BPN que envolveu as mais gradas e ilustres personalidades do Regime
e que tantas e tão profundas farpas cravou no lombo do animal que o ia deixando
sem conserto.
A assistência, variada e policroma, é
notoriamente composta pela nomenclatura
partidária e toda a fina flor do regime com destaque para os iluminados
comentadores e analistas políticos, assessores e gestores públicos. Mais numerosa
e mais discreta é, todavia, a multidão de corruptos
de toda a espécie, chicos espertos e oportunistas, que se distribui por toda
a ampla arquibancada, privilegiando, paradoxalmente, os lugares ao sol, com a sombra
a ser reservada aos militantes de base
que aguardam, febrilmente, lhes sejam dadas as prometidas oportunidades.
Já os camarotes de honra, sobretudo desde que a Troika assumiu a administração do Campo Pequeno, estão reservados a
conhecidos CEO`s das empresas públicas que foram privatizadas ou estão em vias
de privatização, a ex-governantes que dirigem as maiores empresas privadas, a
conselheiros de estado e a afamados autarcas que não há Justiça que os meta na
prisão.
Momento de rara emoção viveu-se,
recentemente, quando o matador Passos
Coelho executou mais um arrojado passe de espada
e muleta que deixou o inteligente Cavaco
Silva embaraçado quanto a saber se seria merecedor de corte de rabo, como o Governo reclamava, tendo
sido a Tribunal Constitucional, arvorado em Direcção
Geral dos Espectáculos e das Artes, a decidir que apenas era constitucional cortar duas orelhas,
porquanto o animal ficaria “sem ponta por
onde se lhe pegue”, para premiar futuras actuações.
Entretanto o animal já por diversas
vezes raspou com as patas no chão e mugiu, assustador, em evidente sinal de
mansidão, mas acabou por afocinhar e cair de cócoras, resignado, descrente,
angustiado, preparando-se para mais. Alimentando, contudo, a secreta esperança,
de que um dia verá atrás das grades, todos aqueles que o traem, maltratam e
escravizam, na mais completa e conivente impunidade. Só assim recuperará a
confiança e alimentará a esperança de que se consumarão as reformas do regime susceptíveis de por termo à “corruptocracia” instalada, salvando-se o
País. Só assim acreditará que o martírio terá fim, embora a prazo, podendo
voltar a pastar, livremente, nos prados verdejantes da paz, do progresso e da
dignidade. Mas enquanto tal não acontecer não faltarão diestros, bandarilheiros, forcados e matadores desejosos de entrar
na corrida para desapiedadamente continuarem
a lancetar os costados do animal indefeso.
Não será de estranhar, contudo, que,
quando menos se espera, o touro entre em correria desaustinada, salte as
barreiras e varra todo o circo com golpes sangrentos dos chifres desembolados.
Talvez seja esta, até, a única forma de se por termo, ainda
que em desespero de causa, a tão desumana corrida.
Este texto não se conforma com o novo Acordo
Ortográfico por opção do seu autor.