sábado, 18 de abril de 2015

A tourada à portuguesa



 

Nunca, como nos tempos que correm, o vocábulo tauromáquico “alternativa“ se aplicou com tão assertiva propriedade à democracia portuguesa, imitação fiel da brutal tragicomédia que é a tourada lusitana.

 Mais grave ainda: na festa brava da democracia à portuguesa o sacrificado não é o touro mas o povo português, que vem sendo incessantemente flagelado com farpas de austeridade cada dia mais gravosas e dolorosas, sem que haja Sociedade Protectora dos animais que lhe valha.

Sobretudo desde que o diestro Passos Coelho entrou a matar, diligentemente coadjuvado na sua faena pelo capinha Paulo Portas e pelo moço de espadas Victor Gaspar, depois que o bandarilheiro José Sócrates rematou a sua mágica sorte de capa com empolgante série de bandarilhas, com que encostou o animal às tábuas.

Dirige a corrida o inteligente Cavaco Silva, um moralista desmoralizante, a toque de cujo clarim as diferentes quadrilhas entram e saem da praça, e executam as suas faenas ao som dos inflamados paso dobles da charanga da Assembleia da República, e das palmas e olés dos aficionados. Não raras vezes também se ouvem os gritos “Eh touro lindo”, “Eh bom aluno” e “Aguenta, que é democrático!”, com os quais pretendem levar o animal a colaborar alegremente no espectáculo.

Ultimamente, várias personalidades públicas com reconhecida experiência no mundo taurino, têm vindo a promover um mano a mano do matador Passos Coelho com o ainda candidato a bandarilheiro António Seguro, que traria, segundo eles, mais forte emoção à fiesta. António Seguro, porém, proclama, peremptório, preferir receber primeiro a alternativa do inteligente Cavaco Silva, e reservar para si a glória de disferir a estocada fatal.

Entretanto, nas trincheiras, agitam-se os grupos de forcados do PS, PSD e CDS, de pé nos estribos e barretes na mão, nervosos, prontos a saltar para a arena, devidamente capitaneados por cabos denodados e valentes. Enquanto os campinos do PC e do BE, com os seus trajes típicos e armados de compridas aguilhadas, batem coma as mãos nas tábuas para chamar a atenção do touro, aguardando a oportunidade de fazer valer a manada de ideias chocas com que irão rodear o massacrado animal para o recolher aos curros e posteriormente ao matadouro, onde esperam poder disputar os despojos do animal sacrificado.

Particularmente vistosas têm sido as sortes a cavalo, com elegantes banqueiros e especuladores montados em corcéis engalanadas com emblemas, lentejoulas e fitas doiradas comemorativas dos recentes sucessos na exploração do Estado e dos cidadãos. Para os anais da história taurina ficará a faena da quadrilha do BPN que envolveu as mais gradas e ilustres personalidades do Regime e que tantas e tão profundas farpas cravou no lombo do animal que o ia deixando sem conserto.

A assistência, variada e policroma, é notoriamente composta pela nomenclatura partidária e toda a fina flor do regime com destaque para os iluminados comentadores e analistas políticos, assessores e gestores públicos. Mais numerosa e mais discreta é, todavia, a multidão de corruptos de toda a espécie, chicos espertos e oportunistas, que se distribui por toda a ampla arquibancada, privilegiando, paradoxalmente, os lugares ao sol, com a sombra a ser reservada aos militantes de base que aguardam, febrilmente, lhes sejam dadas as prometidas oportunidades.

Já os camarotes de honra, sobretudo desde que a Troika assumiu a administração do Campo Pequeno, estão reservados a conhecidos CEO`s das empresas públicas que foram privatizadas ou estão em vias de privatização, a ex-governantes que dirigem as maiores empresas privadas, a conselheiros de estado e a afamados autarcas que não há Justiça que os meta na prisão.

Momento de rara emoção viveu-se, recentemente, quando o matador Passos Coelho executou mais um arrojado passe de espada e muleta que deixou o inteligente Cavaco Silva embaraçado quanto a saber se seria merecedor de corte de rabo, como o Governo reclamava, tendo sido a Tribunal Constitucional, arvorado em Direcção Geral dos Espectáculos e das Artes, a decidir que apenas era constitucional cortar duas orelhas, porquanto o animal ficaria “sem ponta por onde se lhe pegue”, para premiar futuras actuações.

Entretanto o animal já por diversas vezes raspou com as patas no chão e mugiu, assustador, em evidente sinal de mansidão, mas acabou por afocinhar e cair de cócoras, resignado, descrente, angustiado, preparando-se para mais. Alimentando, contudo, a secreta esperança, de que um dia verá atrás das grades, todos aqueles que o traem, maltratam e escravizam, na mais completa e conivente impunidade. Só assim recuperará a confiança e alimentará a esperança de que se consumarão as reformas do regime susceptíveis de por termo à “corruptocracia” instalada, salvando-se o País. Só assim acreditará que o martírio terá fim, embora a prazo, podendo voltar a pastar, livremente, nos prados verdejantes da paz, do progresso e da dignidade. Mas enquanto tal não acontecer não faltarão diestros, bandarilheiros, forcados e matadores desejosos de entrar na corrida para desapiedadamente continuarem a lancetar os costados do animal indefeso.

Não será de estranhar, contudo, que, quando menos se espera, o touro entre em correria desaustinada, salte as barreiras e varra todo o circo com golpes sangrentos dos chifres desembolados.

Talvez seja esta, até, a única forma de se por termo, ainda que em desespero de causa, a tão desumana corrida.

Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico por opção do seu autor.